Estratégias de simulação da velha mídia alteram a realidade

Enfrentar a mídia

PSEUDOEVENTOS: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE

O Chefe de Redação

Matéria-prima das notícias, os acontecimentos sempre tiveram o estatuto de fatos reais e o jornalismo e as ciências humanas como áreas do conhecimento que deveriam primar pela objetividade. O historiador Daniel Boorstin foi o primeiro a questionar isso ao propor a noção de “pseudoevento”: acontecimentos e a mídia seriam contaminados por estratégias de simulação que, para além das simples manipulações, estariam alterando a própria percepção da realidade.

SERÁ A REALIDADE UM FILME MAL PRODUZIDO?

por Wilson Roberto Vieira Ferreira *

“A sociologia, a análise econômica, a análise de poder etc. Sem prejuízo do que todas essas veneráveis ciências são capazes, incorrem elas num erro fundamental. Não consideram a possibilidade de que a própria realidade, inclusive toda a sociologia, a ciência econômica etc, possa ser um filme mal produzido.” — Boris Groys, em Deuses Escravizados.

E se considerarmos que a própria realidade, cercada por um ambiente altamente midiatizado pelas tecnologias de comunicação e informação, estivesse se tornando, ela própria, um campo de eventos cada vez mais artificiais?

Explicando melhor, e se a própria estrutura dos acontecimentos fosse cada vez mais moldada ou influenciada pela presença massiva dessas tecnologias ao ponto de que os eventos progressivamente se esvaziassem em seu estatuto ontológico, isto é, como fatos fechados em si mesmo, espontâneos, históricos?

O “erro fundamental” a que se refere a citação acima do teórico de mídia e filósofo Boris Groys seria o de que as metodologias das ciências humanas ainda não perceberam esta espécie de paradoxo quântico na relação das mídias diante da própria realidade: o olhar do observador altera o transcorrer dos próprios fenômenos que ele quer observar.

E se o social, o político e o econômico tiverem o seu vir-a-ser determinado pela existência das mídias que os observam?

Matrix

Ao consumir as imagens dos eventos através das mídias ainda as tomamos pela tradicional noção ontológica de realidade, mas, ao contrário, há muito tempo deixaram de serem imagens da realidade para se tornarem cada vez mais representações de representações (simulacros) que tomamos como o próprio real. O que chamamos de realidade já teria se reduzido a uma fina interface gerada pelos códigos midiáticos.

Essa dúvida epistemológica levantada por Groys em relação às ciências sociais de que o próprio objeto de estudos estaria perdendo o status ontológico se insere em toda a discussão dos pós-modernos sobre os conceitos de Simulacro e Simulação e a suspeita de que a realidade é um “constructo” ao melhor estilo dos filmes Show de Truman ou Matrix.

Mas muito tempo antes dessas discussões de virada de século, o historiador e crítico social Daniel Boorstin talvez tenha sido o primeiro pesquisador a compreender a maneira como a cultura contemporânea utiliza-se de simulações ou falsas aparências. Em seu livro de 1961 The Image: A Guide to Pseudo-events in America ele reconheceu a simulação como uma importante categoria presente em uma série de diferentes fenômenos sociais.

Boorstin afirmou que os EUA estariam vivendo em uma era do artifício na qual a fabricação de ilusões estaria tornando-se uma força social dominante. A vida pública seria dominada por “pseudoeventos” – eventos encenados, verdadeiras contrafações dos acontecimentos reais.

Assim como os pseudoeventos haveria também as falsas pessoas – as celebridades – com identidades fabricadas sem nenhuma relação com a realidade subjacente.

Até mesmo a indústria do turismo, que outrora oferecia um passaporte para as pessoas viajarem pela realidade, torna agora os viajantes isolados em verdadeiros lugares artificiais habitados por nativos pitorescos em forma de imagem em papel machê, (reproduções estilizadas dos nativos reais) para turistas que esperam ver cenas semelhantes às vistas anteriormente no cinema.

Matrix - MundoO que seriam os pseudoeventos?

Seriam eventos que se distinguiriam dos eventos reais pela sua natureza falsa ou que tende para o artifício, para a fabricação deliberada para as câmeras de TV, fotografia ou repórteres de mídias impressas.

Os pseudoeventos, então, seriam fatos deliberadamente planejados e roteirizados para serem noticiáveis.

Boorstin vê neste domínio das estratégias indiretas das Relações Públicas (estratégias imagéticas ou midiáticas para resolver questões reais) a invasão da simulação na opinião pública.

Os leitores e espectadores acreditam estar consumindo acontecimentos “reais” (assim como notícias sobre terremotos ou inundações, ou seja, fatos “criados por Deus”, na expressão de Boorstin), mas, na verdade, consomem encenações que simulam serem fatos espontâneos.

Entrevistas, coletivas para a imprensa, quiz shows (ou, modernamente, a grande variedade de reality shows que invadem a TV), debates políticos na mídia, seminários, congressos ou eventos em geral entrariam nesta categoria proposta por Boorstin.

Características dos pseudoeventos

1) Não é espontâneo pelo fato de alguém tê-lo planejado, plantado na imprensa ou incitado.

2) Ele é planejado, primeiramente, com o imediato propósito de receber uma cobertura jornalística. Por isto, sua logística (localização, tempo etc.) deve favorecer tecnicamente a reportagem, os links de TV ao vivo e a facilidade de captação de imagens. Para o jornalista a questão “isso é real?” é substituído por “isso é noticiável?” Ou seja, quanto melhor a logística do evento, maior a probabilidade de virar notícia e, portanto, tornar-se “real”.

3) Sua relação com a realidade subjacente é ambígua. Enquanto diante de um evento real (enchentes, terremotos, desastres aéreos) o interesse é em saber o que aconteceu e as consequências, no pseudoevento o interesse está na ambiguidade das declarações (atos falhos, esquecimentos, declarações “involuntárias”, descontrole emocional etc.). “O que será que isso significa?” “O que está por trás disso?” A ambiguidade dá força a este tipo de evento, dando margem a especulações que o fazem progredir geometricamente. Uma simples declaração como “não tenho nada a declarar” já é carregada de ambiguidade e pode transformar-se em notícia.

4) Por isso o pseudoevento tende a tornar-se uma profecia auto-realizadora. É o fenômeno paradoxal onde um artifício pode se realizar como verdade. É também o exemplo de boatos que surgem no mercado financeiro como, por exemplo, dando conta que banco “X” está para quebrar. Tal boato cria uma correria para sacar os ativos do banco vítima do boato. Resultado: o banco acaba de fato quebrando.

Origens dos Pseudoeventos

O motivo histórico para o surgimento dos pseudoeventos na cena pública está no crescimento exponencial da necessidade de um suprimento constante de notícias para preencher colunas de jornais e revistas e minutos da TV e rádio, espaços estes já pagos por anunciantes e que obrigatoriamente devem ser publicados e transmitidos.

A demanda crescente por notícias é muito maior do que a capacidade do mundo para produzir fatos novos para as mídias. Isso requer que muitos acontecimentos sejam fabricados para maquiar esta “deficiência” do mundo.

Para Boorstin os pseudoeventos surgem a partir desta demanda industrial pela matéria-prima das notícias (os acontecimentos). O poder de fazer eventos noticiáveis é, dessa maneira, o poder de fabricar experiências.

Isso lembra a resposta dada por Napoleão ao seu general que objetou que as circunstâncias eram desfavoráveis diante da campanha proposta. “Bah! Eu faço as circunstâncias.”

As chamadas “estratégias indiretas” das relações públicas vão de encontro a essa necessidade das mídias.

De ambos os lados há uma relação promíscua entre jornalista e a fonte da notícia onde diferentes interesses acabam se convergindo: de um lado os profissionais de relações públicas (ou, modernamente, o assessor de imprensa) querendo transformar seu cliente em notícia e, de outro, a mídia, ávida pela matéria-prima das notícias.

Nos EUA a Guerra Civil e o conflito EUA/Espanha, ambos no século XIX, estimularam a mídia a procurar a cobertura cada vez mais atualizada e imediata (hoje diríamos online ou em tempo real). Além disso, a competição entre os gigantes proprietários das mídias como Joseph Pulitzer, William Hearst e Gordon Bennett ampliou a corrida por notícias e exponencialmente a circulação de revistas e jornais.

Paralelo a este crescimento ocorria uma revolução silenciosa, a revolução gráfica: o crescimento vertiginoso da capacidade humana de produzir, preservar, transmitir e disseminar imagens de pessoas, lugares e eventos.

Para Boorstin, estes dois fatores (o crescimento industrial e competitivo das mídias e a revolução gráfica) fazem o fluxo da irrealidade invadir a esfera pública.

Manipulação dos jornais

De um lado, o poder tecnológico e econômico da mídia levou à tentação de fabricar acontecimentos. Por outro, a invasão das imagens altera a sensibilidade dos indivíduos ao ponto em que ficção e realidade, eventos artificiais e espontâneos misturam-se.

“Verossimilhança passou a ter um novo significado. Não apenas foi possível dar a uma nação inteira uma inesperada intimidade da voz e gestos de Franklin Roosevelt. Imagens vívidas vieram se sobrepor à pálida realidade. Cinema em cores levou uma geração inteira de espectadores americanos a pensar que Benjamin Disraeli foi um dos primeiros imitadores de George Arliss, assim como a televisão levou uma geração inteira de telespectadores a ver o cowboy do faroeste como uma réplica inferior de John Wayne. O Grand Canyon torna-se uma desapontadora reprodução de uma foto Kodak original”, destaca Boorstin.

Pseudoevento: confusão entre ficção e realidade

Se a profusão de imagens (sejam ficcionais ou não) inunda a consciência dos indivíduos, é cada vez mais fácil confundir a réplica com o original, a realidade com a imagem feita da própria realidade.

Isto lembra o conceito de hiper-realidade tal qual descrito por Baudrillard: o momento de inversão da consciência onde a contrafação do real torna-se mais importante que o próprio real. Isso fica claro no caso das notícias que envolvem as chamadas celebridades e acontecimentos que envolvem os políticos.

Pessoas célebres (sejam artistas, médicos etc.) são consumidas como notícias espontâneas, ou seja, como fossem pessoas que se destacassem por qualidades especiais ou obras ou projetos de relevância publica.

Mas, cada vez mais, a celebridade atual é um pseudoevento: produto de estratégias de relações públicas e assessorias de imprensa para fabricar eventos que atraiam a atenção de fotógrafos e repórteres, lutam para manterem-se em evidência. Boatos, fofocas, declarações ambíguas, brigas, separações e especulações em geral são meticulosamente criados e plantados nas redações de jornais, TV e rádios.

Com os fatos políticos não é muito diferente. Entrevistas, convenções, debates na TV, coletivas para a imprensa são oportunidades para criar os chamados “balões de ensaio”. Políticos fazem, de forma estudada, declarações que passam por revelações ou projetos bombásticos. Eles sabem que estes projetos são impossíveis de serem realizados. Seu objetivo é criar repercussão, polêmicas para ocupar espaço em telejornais e colunas de comentaristas políticos.

Tanto as celebridades como os políticos são capazes de criar eventos e personagens dramáticos que parecem seguir roteiros ficcionais de telenovelas: suspense, traições, sacrifícios etc. Isso cria um fenômeno paradoxal: espectadores e leitores consomem pseudoeventos como notícias reais porque possuem uma linguagem ficcional.

Qual nome o partido lançará como candidato a governador? O suspense é artificialmente mantido, declarações contraditórias são plantadas na imprensa.

Televisão hipnotiza

Vazamentos programados

Um bom exemplo são os pretensos “vazamentos” de informações. Em ambientes logisticamente favoráveis para a cobertura televisiva (coletivas, mesas redondas, congressos etc.) surgem “inesperados” vazamentos de informações por meio de microfones abertos que captam confissões ou diálogos “informais”.

Esses supostos vazamentos de informações são pseudoeventos perfeitos para, a partir deles, notícias serem veiculadas que alimentam boatos, especulações que serão fontes de matérias, colunas e editoriais.

Foi o caso de um Encontro de Cúpula do G8 (sete países mais industrializados do mundo e a Rússia) realizado na Escócia. Diante de um microfone aberto, o então presidente dos EUA George Bush falou “shit” (merda) num diálogo informal com o primeiro-ministro da Inglaterra Tony Blair.

Ao mesmo tempo, veículos de comunicação brasileiros transcrevem diálogos entre Blair e Bush que “vazaram” através de sites como CNN, BBC e do jornal “The Independent”. No diálogo, ambos referem-se continuamente a um sujeito não definido (“Ele”) que estaria entravando as negociações. Quem seria este “Ele”? Seria o presidente brasileiro Lula? Ou o líder russo Vladimir Putin?

Tal forma de pseudoevento alimenta a mídia ávida por matéria-prima que renda alguma manchete já que tais encontros nada de novo acrescentam à ordem política e econômica internacional.

Se o pseudoevento parece ser mais atraente do que os acontecimentos espontâneos por possuir uma linguagem ficcional, diante de um evento real imprevisível e autêntico a reação das pessoas passa a ser de dúvida quanto a sua veracidade.

Esse fenômeno paradoxal foi acompanhado com o atentado ao World Trade Center em Nova York em 2001. Diante dos aviões colidindo com as torres gêmeas, as explosões e o desmoronamento final a incredulidade era generalizada: “Isso só pode ser filmagem de mais um filme-catástrofe de Hollywood! Isso não poder ser real!”

Pseudoeventos planejados

Concluindo, para Boorstin os pseudoeventos cada vez mais se sobrepõem aos eventos reais pelos seguintes motivos:

1) Os pseudoeventos são mais dramáticos o que agrada tanto a mídia quanto o público. Um debate entre candidatos na TV, por ser planejado, tem mais suspense do que um encontro casual.

2) Os pseudoeventos são planejados para serem disseminados mais facilmente. Sua natureza ambígua e os seus personagens escolhidos por serem “midiáticos”.

3) Os pseudoeventos podem ser repetidos à vontade. Toda a sua logística (releases, kit imprensa com fotos e matérias prontas para consumo pelos jornalistas).

4) Os pseudoeventos são planejados para serem inteligíveis, mesmo tratando-se de assuntos complexos para o espectador ou jornalistas. Se não temos informações para discutir de forma fundamentada as qualificações dos candidatos e suas propostas mais técnicas, pelo menos podemos julgá-los pelas suas performances televisivas. Por isso, tornam-se personagens estereotipados tal quais tipos ficcionais (o “agitador”, o “astuto”, o “sincero”, o “traiçoeiro” etc.) para uma maior inteligibilidade do roteiro.

5) Os pseudoeventos são mais “amigáveis” por serem mais convenientes de serem testemunhados. Ao contrário dos eventos espontâneos, os pseudoeventos ocorrem em horários, dias e locais mais facilmente cobertos pela mídia.

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(Final da primeira parte da trilogia para discutir as mutações que historicamente vêm ocorrendo em torno da noção de Realidade)

* Em Cinema Secreto: Cinegnose

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O Chefe de Redação


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