Receita para superar crises econômicas: afeição e solidariedade
Se as crises batem mais forte para os mais pobres, é também nas comunidades carentes que surgem iniciativas que provocam maior dinamismo para as atividades comerciais locais. Clubes de trocas, cooperativas de trabalhadores e de consumidores e bancos comunitários são fenômenos da chamada economia solidária que vêm experimentando no Brasil um verdadeiro boom e têm dado condições de sobrevivência a comunidades das periferias das grandes cidades, do campo e de cidades menores.
Paul Singer* está à frente da Secretaria de Economia Solidária, do Ministério do Trabalho e Emprego. Ele avalia que, em momentos de dificuldades, há a tendência de que as pessoas busquem alternativas ao modo de produção excludente. “O que menos se troca em um clube de trocas é mercadoria. Troca-se afeição, trocam-se histórias”, cita o economista destacando o caráter inclusivo da economia solidária.
A ECONOMIA SOLIDÁRIA NA RECUPERAÇÃO ECONÔMICA
Por Luciana Lima, da Agência Brasil
Agência Brasil – A economia solidária pode ser vista como alternativa para comunidades que sofrem com o colapso da economia de mercado?
Paul Singer – Com certeza. A economia solidária surgiu no Brasil em um momento de forte crise. Uma crise à qual eu chamaria de tragédia, que foi a abertura do mercado nos anos 1990. Essa abertura começou no governo de Fernando Collor e depois continuou no governo de Fernando Henrique Cardoso. Nessa época, cerca de 7 milhões de postos de trabalho foram eliminados, porque começamos a importar em uma quantidade maluca todo tipo de mercadoria. Importávamos desde ursinho de pelúcia até guarda-chuvas, da China, da Coréia do Sul e de outros lugares onde o custo era menor. Foi uma tragédia para os trabalhadores brasileiros. O desemprego subiu a patamares nunca vistos. Os salários baixaram e também houve mais pobreza. Nesse contexto é que surge a economia solidária. Ela surge como reação a isso, como estratégia de sobrevivência. As pessoas precisam sobreviver e surgiram experiências na época quase desconhecidas.
ABr – Que experiência lhe chamou mais a atenção nessa época?
Singer – Surgiram as empresas cooperadas, que iriam fechar, mas os trabalhadores conseguiram se juntar e ficar com ela. De empregados passaram a ser donos. Isso é o sinal mais concreto de que a economia solidária é uma solução para a crise. Ela evita deixar pessoas sem meios e sem trabalho. Milhares deixaram de ser empregados e passaram a ter participações. Na economia solidária, não há emprego. O que existe é participação. Essa é também uma experiência internacional, mas acho que nós, brasileiros, estamos na frente.
ABr – O senhor acha que os efeitos da crise no Brasil já estão sendo superados ou essa crise é mais profunda do que se imagina?
Singer – Se as pessoas acreditarem que estamos saindo da crise, elas vão agir como se estivéssemos mesmo já saindo. E aí sairemos mesmo. Esse é um ponto que as pessoas, em geral, entendem logo, mas não descobrem sozinhas. A previsão faz o futuro. Se as pessoas forem pessimistas, o futuro será ruim, porque elas vão se preparar para esse futuro ruim. Os mais conservadores estavam exigindo que o governo cortasse gastos. Mas se o governo fizesse isso com a previsão de que iria arrecadar menos, iria mesmo arrecadar menos. O governo está gastando por conta. A arrecadação subiu um pouco, mas o governo está gastando mais. Agora, claramente a economia está se recuperando. As vendas no varejo estão crescendo, a indústria automobilística bateu recorde em março, mas não ouso dizer que o pior já passou, primeiro porque eu não tenho bola de cristal, segundo, não estou falando como economista profissional. Mas acho que a chance é boa. Saberemos disso daqui a alguns meses.
ABr – Em que pontos a economia solidária se distingue da economia capitalista?
Singer – A economia solidária tem tudo ao contrário da economia capitalista. A economia capitalista se baseia essencialmente na propriedade privada, de meios de produção, ou seja, as fábricas, os escritórios, as clínicas, tudo tem dono. Esse dono é quem emprega trabalhadores em troca de um salário e que os trabalhadores façam o que ele manda. Na economia capitalista, a empresa está inteiramente a serviço dos interesses do dono, que é maximizar o lucro. Nem consumidores, nem trabalhadores têm poder. Quem tem poder é quem tem o capital. Na economia solidária não tem isso. Os donos dos empreendimentos são os trabalhadores ou os consumidores.
ABr – Mas como isso funciona?
Singer – Dois tipos de empreendimentos podem ser formados na forma de cooperativas, mas não necessariamente. No entanto, o cooperativismo foi a forma legal mais fácil de se organizar. As cooperativas podem ser de produção, que são também chamadas de cooperativas de trabalhadores. Nesse caso, não tem patrão. Os próprios cooperados administram o empreendimento de forma coletiva, dividem o capital entre eles, por igual, e nas decisões que precisam ser tomadas, cada um tem um voto. Esses são os princípios básicos de qualquer cooperativa e da economia solidária. Há cooperativas que fazem suas assembléias enquanto trabalham. Conheço uma em Porto Alegre, a Univens, que vem a ser a abreviação de “Unidas Venceremos”. Trata-se de uma cooperativa de costureiras, na qual trabalham 20 mulheres e um homem, que cuida da serigrafia das roupas. Ele não é costureiro e trabalha no outro andar. É chamado quando elas têm que tomar alguma decisão. Isso é só um exemplo do que acontece na prática. Isso é só um exemplo de economia solidária que produz mercadorias e serviços e quem vende.
ABr – Como funciona a cooperativa de consumidores?
Singer – São pessoas que se juntam para atividades de proveito total deles. Eles não vendem, até compram da sua própria cooperativa o que ela produz. É o caso das escolas cooperativas. Temos várias no Brasil que têm como sócios os pais dos alunos. Existe uma escola formada por funcionários do Banco do Brasil que estavam insatisfeitos com a escola de seus filhos. Eles criaram uma cooperativa que mantém a escola. Temos cooperativas de habitação, em que as pessoas se associam para ter casa própria, algumas vezes trabalhando e produzindo a casa em regime de mutirão, outras vezes, só colocando dinheiro, para que se possa construir prédios e apartamentos. Existem ainda na área de saúde, com pessoas que se juntam para fazer um plano de saúde. Quem manda é quem usufrui do serviço. Se você entra em um plano de saúde capitalista, vai pagar um valor por mês e o capitalista que administra seu dinheiro vai pegar uma parte para ele, que é o valor pago para ele administrar o plano. Claro que em uma cooperativa quem tem o trabalho de administrar são os próprios sócios.
ABr – E os clubes de trocas?
Singer – Os clubes de troca são basicamente respostas a situações de crise, falta de trabalho e falta de renda. Os dois casos históricos ocorreram em tempos de crise. No Canadá, um clube de troca ocorreu em uma cidade próxima a Vancouver na década de 1980. Nessa cidade havia poucos empregadores. Toda a população trabalhava ou em uma base aérea ou na indústria madeireira, que fechou. A população ficou sem qualquer fonte de renda. Uma pessoa organizou o clube de trocas para os moradores e, como todo mundo fazia coisas que poderiam ser úteis, o clube funcionou. Eles inventaram uma moeda, e as pessoas conseguiram sair do impasse. Na grande crise pela qual a Argentina passou em 2001, os clubes foram essenciais porque faltava dinheiro. Foi uma crise terrível. As pessoas passavam fome, assaltavam supermercados, chegaram a derrubar um governo. Há um cálculo de 6 a 7 milhões de pessoas que foram ao clube de troca para conseguir comida levando o que tinham em casa ou o que se podia produzir. Foi uma verdadeira explosão. Foi muito ruim porque os clubes de troca na Argentina cresciam, tinham centenas de milhares de sócios. De repente, essas centenas de milhares de pessoas viraram milhões de pessoas. Daí, perdeu-se o controle e começou a falsificação das moedas sociais. Os preços também subiram porque havia muito mais comprador que produtos. A idéia do clube é que quem compra também vende. São os chamados ‘prossumidores’, fusão de produtores e consumidores. Eles devem exercer os dois papéis.
ABr – Que efeito o clube de troca tem sobre a atividade econômica?
Singer – Os clubes de troca foram criados simultaneamente no Canadá e na Argentina. Esses são os primeiros. Mas há registros de cubes de troca ou coisa semelhante no passado, durante a crise dos anos 30. Depois, a idéia se perdeu. O clube cria um mercado onde não havia nada, inventa uma moeda onde não havia moeda. Com isso, surge uma oportunidade de trocas, trabalho e consumo. Ele, tipicamente, aparece em situações de crise, formado por trabalhadores autônomos, microempreendedores, cujos fregueses perderam o emprego. As pessoas acabam se conhecendo melhor. Há situações em que pessoas adoecem e ganham crédito dos outros que vão continuar fornecendo para ele, mesmo que não possa produzir naquele momento, por estar impossibilitado.
ABr – Qual o efeito social do clube de trocas?
Singer – O que menos se troca são mercadorias. Trocam-se afeição, histórias. O desemprego é horrível porque tira as pessoas do meio social delas. O trabalho é o lugar onde estão os seus amigos. As Sels (Systémes d’Echanges Local), como são chamados os clubes de trocas ma França. são associações de pessoas que festejam a possibilidade de interagir. Nesse caso, a moeda social tem um papel econômico também, mas pelo jeito, menos importante. Ela consegue reincluir no meio social gente que estava isolada. Isso é geral. Não é só na França.
ABr – Como funcionam o banco solidário e a moeda social?
Singer – Hoje, no Brasil, estamos desenvolvendo bancos para pessoas muito pobres. Essa é uma criação de uma favela de Fortaleza chamada Conjunto Palmares, o Banco Palmas. A moeda social que eles usam para criar crédito chama-se palmas. Uma palma vale um real. Em Vitória, há também um banco famoso, chama-se BEM, que funciona no Morro de São Benedito. Essa localidade virou um complexo de cooperativas de várias atividades. Se a pessoa fizer compras no comércio, colocar gasolina no carro, ela ganha um desconto para usar a moeda local. Com isso, o dinheiro da comunidade é gasto ali, ao invés de ser gasto fora da comunidade. As atividades comerciais se movimentam. A moeda social é uma moeda, geralmente de papel porque o povo gosta disso. Poderia ser um cartão de crédito, mas o povo acha o cartão muito abstrato. Eles imprimem. Tenho uma coleção de moedas sociais que, ao longo dos anos, fui sendo presenteado. São notas com desenhos e com nomes simbólicos, ou do local, como Palmas, tem reais verdes, reais solidários ou somente solidários,. São nomes que exprimem a ideologia da associação. A moeda social também é usada em clubes de troca.
ABr – Por que o uso da moeda em uma relação onde se privilegia a troca?
Singer – As pessoas se reúnem e usam a sua moeda para avaliar o serviço e os bens que eles podem produzir. Em geral, nos clubes de troca, há uma espécie de feira que é muito festiva. É uma festa popular no domingo de manhã no bairro. As pessoas se conhecem, isso é importante. Todos mundo leva coisas que todo mundo produziu. Mulheres levam pão, bolo e podem trocar por outro bem ou serviço. Se você tem um cômodo vazio, pode alugar. Mas a pessoa que aluga pode não ter nada para você. Então, ele vai pagar com a moeda local, e você poderá comprar alguma coisa que precisa. O banco comunitário tem um âmbito de ação mais amplo, e a moeda é usada para proteger e criar um mercado local. Surge uma proteção contra a competição externa que é, geralmente, de empreendimentos capitalistas, supermercados e grandes lojas, por exemplo.
ABr – Mas como as pessoas têm acesso à moeda no clube de trocas?
Singer – Quando elas ingressam no clube, ganham um valor. É um empréstimo, mas enquanto ela estiver no clube ninguém vai cobrar. As transações têm um registro para que os administradores possam saber que o clube de trocas está funcionando. Quando se aluga o quarto, comunica-se à direção do clube a transação, por quanto foi alugado e para quem. O administrador registra isso. Esse registro serve para a direção do clube ter uma idéia de como esse dinheiro está circulando. Se estiver tudo bem equilibrado, esse dinheiro nunca volta para a direção.
ABr – Mas o que pode colocar em risco o equilíbrio de um clube de trocas?
Singer – Podem haver pessoas que nunca compram, só vendem. Ficam acumulando dinheiro. Isso é ruim para o clube porque o dinheiro fica estocado. A pessoa não ganha nada com isso porque não rende juros e os outros membros do clube não têm para quem vender. Nesse caso, cabe até uma interferência. Tem que haver pressão, inclusive, algumas vezes, dando prazo para era essa pessoa gastar o dinheiro. Acumular dinheiro na economia solidária é contra o interesse geral.
ABr – A busca capitalista pelo acúmulo de capital então não pode funcionar na economia solidária?
Singer – O acúmulo de capital pode ocorrer para os integrantes do grupo, mas não dentro do clube de trocas. Há acumulação quando eles criam, por exemplo, o Palma Fashion, que é uma cooperativa de costureiras do Conjunto Palmares que fazem roupas, desfiles e conseguem vender sua produção. As costureiras criaram um mercado e estão produzindo. Aí sim, na cooperativa, cada costureira teve que entrar com um valor para que pudessem comprar tecido, linha, máquinas de costura. Nesse caso, há sim acumulação de capital, mas dentro do clube de trocas, não. O que acontece é que se cria um mercado onde não havia.
ABr – Mas, hoje, quem coloca dinheiro nos bancos comunitários?
Singer – O Banco Popular do Brasil tem hoje R$ 1 milhão no Banco Palmas, por exemplo. Começou com R$ 50 mil. Na medida em que eles foram vendo o funcionamento do banco, aumentaram os valores. Mas o Banco Popular do Brasil está colocando dinheiro em outros bancos comunitários, no Espírito Santo, na Bahia. Hoje, existem mais de 40 bancos comunitários já funcionando no Brasil inteiro. Esse aporte é feito em real. Na verdade, o Banco Palmas só emite palmas na medida em que tenha real. Eu sou contra isso. Pessoalmente, acho que isso é um erro porque o Banco Palmas poderia emitir duas vezes o valor em real que não teria problema, na medida em que essa moeda circula. No entanto, eles fazem questão e, me parece, que isso até faz parte de um acordo com o Banco Central.
ABr – E como é a relação desses bancos com o Banco Central?
Singer – Os bancos, na verdade, são bancos fantasia. O pessoal do Banco Palmas, por exemplo, estava ativando o banco na sede da associação de moradores. Aí apareceu a recepcionista dizendo que havia dois homens do lado de fora dizendo que queriam ver o banco. Os administradores responderam: que banco? Ofereceram umas cadeiras para eles. Eles eram do Banco Central, que queriam saber que banco era aquele, mas nem sabiam que tinham criado um banco. Enfim, hoje há uma relação entre o BC e o Banco Palmas. Aqui da secretaria, somos meio intermediários dessa relação. O Banco Palmas tem o nome de banco porque o povo vê isso como um banco, mas não é algo formal. É claro que tem contabilidade, controle social. Os bancos comunitários são uma espécie de clube de troca mais amplo. Eles podem receber depósitos. Se o empréstimo é em real, eles cobram juros. Comparando com o Brasil, que tem taxas inacreditavelmente altas, eles cobram pouco, cerca de 2% ao mês ou até menos. Isso porque os reais que eles têm são do Banco Popular do Brasil, que cobra algum juro. Mas se o empréstimo é na moeda social, não há juros.
* Paul Singer é economista, escritor e professor universitário de origem austríaca. Trabalha atualmente com o tema da economia solidária e assumiu a tarefa de implementar, em junho de 2003, a Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES), constituída pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego.
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