Governos preparam sistemas para desaparecer com conteúdos digitais

GEORGE ORWELL É QUEM SABIA DAS COISAS

Charge NSA CIA & EUA

Após alimentar sonhos de uma comunicação radicalmente livre, a internet pode converter-se no oposto?

A digitalização, que hoje acelera a circulação de informações em todos os formatos e linguagens, não facilitaria, também, a eliminação de informações e opiniões que já não têm existência material — porque foram reduzidas a impulsos eletrônicos?

A cada dia que passa, novos fatos reforçam a urgência de considerar estas ameaças com seriedade e de encontrar meios para afastá-las.

Nos EUA, depois de analisar a fundo o sistema de coleta maciça de informações sobre as chamadas telefônicas dos cidadãos, mantido pela Agência Nacional de Segurança (NSA), um juiz considerou-o, em 14 de dezembro, “quase orwelliano”.

Três dias depois, um grupo de consultores formado pelo presidente Barack Obama para analisar este mesmo mecanismo recomendou uma série de mudanças.

Propôs, em especial, retirar os poderes que pequenos grupos de assessores militares têm hoje para ordenar a vigilância direta sobre o conteúdo das comunicações mantidas por certas pessoas, a partir da identificação de seus interlocutores frequentes. Não há, no entanto, qualquer garantia de que as recomendações sejam adotadas.

Ao contrário: analistas de assuntos de segurança, ouvidos pelo “New York Times”, disseram “duvidar” que Obama tenha “coragem” para enfrentar a vasta rede de agências de espionagem formada após 11 de setembro de 2001 e a assinatura da famigerada “Lei Patriótica“.

Um assessor da Casa Branca afirmou que o presidente analisará as propostas em suas férias de fim de ano no Havaí, mas já descarta uma delas: precisamente a que desmantelaria certas articulações entre tais agências, para limitar seu poder.

Diplomata norte-americano

Até onde pode ir este controle sobre a comunicação? No texto a seguir, Peter Van Buren, um diplomata norte-americano ainda na ativa, chama atenção para um de seus aspectos mais aterrorizantes.

Num mundo em que as informações estão sendo digitalizadas em enorme velocidade e em que os suportes físicos estão desaparecendo, pode tornar-se fácil demais “apagar” informação incômoda.

Não se trata apenas de hipótese. Van Buren, que escreve em várias publicações importantes, apresenta os sistemas que já são utilizados (embora em pequena escala), por governos e empresas para restringir o acesso dos cidadãos a certos conteúdos.

No momento, segundo ele, isso é feito com pretextos consensuais: por exemplo, restringir o acesso a sites que estimulam a pedofilia e o abuso de crianças.

Mas, em novos cenários políticos, as mesmas técnicas de invisibilização não poderiam ser utilizadas contra ideias dissidentes? Não estamos arriscados a materializar o “buraco de memória” previsto por George Orwell em “1984″?

O alerta de Van Buren não precisa ser tomado como uma sentença. Assumir a ameaça como algo inevitável seria, aliás, um convite ao conformismo.

Mas na agenda de temas sobre os quais é preciso agir para construir um planeta habitável no futuro, parece cada vez mais necessário destacar a disputa pela liberdade na internet.

Talvez o que esteja em jogo, nesta batalha, seja a própria possibilidade de democracia e liberdade de expressão.

Obama Is Watching You

E SE O GRANDE IRMÃO CONTROLAR A INTERNET?

Por Peter Van Buren *

E se fizessem Edward Snowden desaparecer? Não, não estou sugerindo alguma iniciativa “inovadora” da CIA, ou uma teoria conspiratória ao estilo de “quem matou Snowden?”, mas algo ainda mais tenebroso.

E se simplesmente fosse possível fazer desaparecer tudo o que alguém denunciou?

E pudessem ser eliminados, em tempo real, todos os documento da NSA revelados pelo ex-agente — cada entrevista que ele concedeu, cada indício documentado sobre um Estado de segurança nacional que fugiu de qualquer controle?

E se a publicação de tais revelações pudesse ser reduzida a um esforço estéril, como se os fatos não existissem mais?

Estou sugerindo o enredo para o romance de algum George Orwell do século 21? Dificilmente.

À medida que caminhamos para um mundo totalmente digitalizado, coisas semelhantes poderiam ser possíveis em breve, não na ficção cientifica, mas no nosso mundo real, apenas pressionando um botão.

Na verdade, os primeiros protótipos de uma nova técnica de ocultameno radical já estão sendo testados. Estamos mais perto de uma distópica realidade aterradora, que poderia ter sido o tema de romances futuristas imaginários.

Bem-vindo ao buraco da memória.

1984 George Orwell

Mesmo se um futuro governo cruzar novas linhas vermelhas e simplesmente assassinar os vazadores de informações sigilosas, outros sempre emergirão.

Mas em 1948, em sua assustadora obra 1984, no entanto, Orwell sugeriu uma solução mais diabólica para o problema. Evocou um artificio tecnológico para o mundo do Grande Irmão (Big Brother) que chamou de “buraco da memória”.

Em seu futuro sombrio, exércitos de burocratas, trabalhando ironicamente no Ministério da Verdade, passavam suas vidas apagando ou alterando documentos, jornais e livros, a fim de criar uma versão aceitável da história.

Quando alguém caía em desgraça, o Ministério da Verdade o excluía, e toda documentação relacionada com sua vida, ia para o buraco da memória. Cada artigo ou notícia que mencionava ou registrava de alguma maneira sua vida era modificado para erradicar todo os indícios de sua existência.

No mundo pré-digital de Orwell, o buraco da memória era um tubo de vácuo no qual velhos documentos eram fisicamente destruídos para sempre.

As alterações de documentos existentes e a eliminação de outros asseguravam que nem mesmo as repentinas alterações de alianças e estabilidade entre inimigos globais representassem problema para os guardiões do Grande Irmão.

Neste mundo imaginado, graças aos exércitos de burocratas, o presente era o que sempre havia sido e os documentos alterados comprovavam este fato, sem o risco de que memórias titubeantes pudessem argumentar em contrário.

Qualquer pessoa que expressasse dúvidas sobre a verdade do presente seria marginalizada ou eliminada, sob acusação de “crime de consciência”.

Documentos Top Secret

CENSURA DIGITAL, GOVERNAMENTAL E CORPORATIVA

A maioria de nós acessa notícias, livros, músicas, filmes e outras formas de comunicação por meios cada vez mais eletrônicos. O Google já tem mais receita publicitária que o conjunto de todos os meios impressos dos EUA. Mesmo a venerável Newsweek não publica mais uma edição em papel.

E nesse mundo digital se explora a possibilidade de um certo tipo de simplificação. Os chineses e iranianos entre outros, por exemplo, já implementaram estratégias de filtragem na web para bloquear o acesso a sites e material que não são aprovados pelos governos.

Do mesmo modo (embora sem sucesso), o governo dos EUA bloqueia o acesso de seus funcionários ao Wikileaks e ao material divulgado por Edward Snowden, ainda que a censura não prevaleça em suas casas. Bem, por enquanto…

A Inglaterra, no entanto, dará em breve um passo significativo, no que diz respeito ao que o cidadão pode ver na web, inclusive quando está em sua casa. Quase todos os usuários de internet serão incluídos num sistema destinado a filtrar a pornografia.

Por padrão, os controles também bloquearão o acesso a material violento, conteúdo relacionado a extremistas e terroristas, sites relacionados a anorexia, distúrbios alimentares e suicídios, assim como sites que mencionem álcool e tabagismo.

O filtro também bloqueará material esotérico, embora grupos ativistas baseados no Reino Unidos exijam explicações.

Controle de computadores

E as formas de censura na internet patrocinadas pelos governos estão sendo privatizadas. Novos produtos comerciais, de fácil aplicação, garantem que uma organização não precise ser a NSA para bloquear conteúdos.

Por exemplo, a Blue Coat, empresa-líder em “segurança” na internet é uma importante exportadora de tais tecnologias. Pode estabelecer facilmente um sistema para monitorar e filtrar todo o uso da internet, bloqueando sites por seu endereço www, por palavras-chaves ou mesmo por seu conteúdo.

O software da Blue Coat é empregado, entre outros, pelo exército dos EUA, para controlar o que seus soldados veem quando deslocados ao exterior; e pelos governos repressivos da Síria, Arábia Saudita e Myanmar para bloquear ideias políticas do exterior.

BUSCAS NO GOOGLE

Em certo sentido, o buscador do Google também pode fazer desaparecer material. No momento, é simpático aos denunciantes.

Uma rápida busca (0,22 segundos) produz mais de 48 milhões de hits sobre Edward Snowden, que se referem em sua maioria aos documentos filtrados da NSA. Alguns dos sites apresentam os próprios textos, etiquetados como Top Secret.

Há menos de meio ano, somente membros de um grupo muito limitado no governo, ou conectado contratualmente com ele, poderiam ver coisas semelhantes. Agora, estão disponíveis em toda a web.

Ex-agente da CIA

Buscador número 1 na internet, o Google parece uma máquina para difundir maciçamente — e não suprimir — notícias. Coloque qualquer informação na web e é provável que o Google encontre-a rapidamente, agregando-a aos resultados de sua busca no mundo inteiro, às vezes em segundos.

Mas como poucas pessoas pesquisam além dos primeiros resultados, o simples fato de estar presente ou oculto entre estes tem enorme significado. Já não basta fazer com que o Google note o que você produz.

O que importa agora é conseguir que coloque o material suficientemente acima, na página de resultado das buscas. Se o seu site é o numero 47.999.999, numa pesquisa sobre Snowden, você pode dar-se por morto, praticamente desapareceu.

Pense nisso como ponto de partida para as formas mais significativas de desaparecimento, que podem nos aguardar no futuro.

Espionagem NSA Buscas

Ocultar algo aos usuários, reprogramando as máquinas de busca, é um passo sombrio no futuro. Outro é a eliminação efetiva de conteúdos, um processo que exigiria reprogramar os computadores que realizam a pesquisa.

E se o Google se negar a promover esta mudança em direção a buscas destrutivas, a NSA — que parece já ser capaz de projetar seus tentáculos dentro do buscador — poderia implantar sua própria versão de um código maligno, como já fez em pelo menos 50 mil casos.

Mas não se preocupe apenas com o futuro: uma estratégia de busca negativa já funciona, mesmo que seu objetivo atual, agir contra os pedófilos, seja fácil de aceitar. Mas existe um problema por trás dessa cortina de fumaça.

De fato, o Google introduziu recententemente um software que dificulta a busca de material relacionado a abuso infantil. Como disse o chefe da empresa, Eric Schmidt, o buscador foi programado para limpar mais de 100 mil palavras-chaves usadas por pedófilos para buscar pornografia infantil.

Agora, por exemplo, quando os usuários fizerem pesquisas que possam estar relacionadas com abuso sexual, não encontrarão resultados que levem a conteúdo ilegal. Em seu lugar, o Google orienta para sites de ajuda e conselhos.

Em breve presenciaremos essas mudanças em mais de 150 idiomas, de modo que o impacto seja verdadeiramente global, escreveu Schmidt.

Métodos da NSA

Enquanto o Google reorienta as buscas de pornografia infantil para sites de aconselhamento, a NSA desenvolveu uma capacidade baseada num sistema similar.

A agência controla um conjunto de servidores com o codinome Quantum, que se encontram na rede central da internet. Sua tarefa é reorientar objetivos, afastando-os dos destinos solicitados e redirecionando-os — repare — para sites preferidos pela agência.

A ideia é: você digita o endereço de um site e é conduzido a outro, menos odiado pela agência!

Embora atualmente essa tecnologia seja usada para enviar potenciais jihadistas online a materiais islâmicos mais moderados, no futuro poderá ser empregada, por exemplo, para reorientar as pessoas que procuram notícias de sites como a Al-Jazeera para outra agência, que se ajuste à versão dos fatos construída pelo governo dos EUA.

… E DESTRÓI!

No entanto, as tecnologias de bloqueio e reorientação, que provavelmente serão mais sofisticadas no futuro, não constituem a maior ameaça. O Google já prepara o passo seguinte, a serviço de uma causa que quase todos aplaudirão.

Ele agora está implementando uma tecnologia capaz de identificar imagens fotográficas de abuso infantil cada vez que aparecem em seu sistema, assim como tecnologia de comprovação capaz de verificar e eliminar vídeos ilegais.

As ações da empresa para combater a pornografia infantil podem até ser “muito bem intencionadas”, mas a tecnologia que esté sendo desenvolvida para tanto deveria nos aterrar a todos.

Imagine se, em 1971, os Papéis do Pentágono, o primeiro documento sobre as mentiras da guerra do Vietnã a que a maioria dos norte-americanos teve acesso, houvessem sido eliminados. Se a Casa Branca de Nixon tivesse desaparecido com esses documentos, a história não teria seguido um caminho diferente, muito mais sombrio?

George Orwell

Ou considere um exemplo que já é realidade. Em 2009, muitos donos de leitores de livros digitais Kindle descobriram que a Amazon havia colocado suas mãos em seus aparelhos durante a noite e eliminado remotamente as cópias de Revolução do Bichos e 1984 de Orwell (não é uma ironia).

A empresa alegou que os livros, publicados por erro em suas máquinas, seriam na realidade, “cópias dos romances vendidas ilegalmente”.

Da mesma maneira em 2012, Amazon apagou o conteúdo do Kindle de um cliente sem advertência prévia, afirmando que sua conta estava relacionada com outra conta que havia sido previamente encerrada por ir contra as políticas da empresa.

Usando a mesma tecnologia, a Amazon tem agora a capacidade de atualizar livros em seu aparelho, com o conteúdo alterado. Depende da empresa informar os usuários a respeito ou não. Captou?

Além do Kindle, o controle remoto sobre outros aparelhos já é uma realidade. Grande parte dos softwares de nossos computadores comunica-se, em segundo plano, com servidores da empresa produtora, sendo sujeitos a atualizações automáticas que podem alterar seu conteúdo.

A NSA utiliza malwares, softwares malignos implantados remotamente em um computador, para alterar o modo de funcionamento da máquina. O código do vírus Stuxnet, que provavelmente danificou mil centrífugas usadas pelos iranianos para enriquecer urânio, é um exemplo de como pode operar algo parecido.

Apple backdoor NSA

Atualmente, cada iPhone já checa, com a sede central da Apple, que aplicativos foram comprados e sobre que links você clica rotineiramente. E a companhia preserva-se o direito de desaparecer com qualquer aplicativo, por qualquer motivo.

Em 2004, a TiVo processou a Dish Network por entregar a seus clientes o equipamento set-top boxes para conectar televisões que, segundo a TiVo, infringiam suas patentes de software.

Apesar do caso ter sido solucionado em troca de uma grande indenização, como remédio inicial, o juiz ordenou a Dish que desativasse eletronicamente todos os 192 mil aparatos que havia instalado nas casas dos clientes.

No futuro, pode haver cada vez mais meios para invadir e controlar computadores, alterar e fazer desaparecer o que está sendo lido, enviar os internautas a sites que não buscavam.

As revelações de Snowden, sobre o que faz a NSA para reunir informação e controlar a tecnologia, fascinaram o planeta desde junho, mas são apenas parte da equação. Como o governo ampliará seus poderes de vigilância e controle no futuro é uma história que ainda não foi contada.

Imagine instrumentos para ocultar, alterar ou eliminar conteúdos com campanhas difamatórias para desacreditar ou dissuadir denunciantes. O poder que está potencialmente à disposição dos governos e corporações tornou-se mais evidente.

Gângster fundador do FBI

A possibilidade de ir além de alterar conteúdos, e modificar a maneira como as pessoas atuam também se encontra, obviamente, nas agendas governamentais e corporativas.

A NSA já reuniu dados para chantagem espionando o acesso de muçulmanos radicais a pornografia digital. Também interceptou eletronicamente um congressista norte-americano sem possuir um mandato judicial.

A capacidade de reunir informações sobre juizes federais, dirigentes do governo e candidatos presidenciais fazem com que os esquemas de chantagem de J. Edgar Hoover [que gostava de se exibir com metralhadoras, como um gângster], no FBI da década de 50, parecerem tão pitorescos quando as meias soquete e saias poodle da época.

As maravilhas da Internet nos maravilham todos os dias. As possibilidades distópicas orwellianas da rede não tinham, até recentemente, chamado a nossa atenção da mesma forma. Elas deveriam.

LEIA ISSO AGORA, ANTES QUE SEJA APAGADO

O possível futuro que espera os próximos vazadores de informação dos serviços de inteligência estadunidenses é aterrorizante.

Agora, quase tudo é digital, o que facilita os controles. Repare:

. grande parte do tráfico da internet mundial flui através dos EUA ou países aliados (ou da infra-estrutura de companhias norte-americanas no exterior);

. máquinas de busca podem encontrar em questão de frações de segundos qualquer coisa;

. a Lei Patriótica e as decisões secretas do Tribunal de Supervisão da Inteligência Externa convertem o Google e gigantes da tecnologia em enormes instrumentos do Estado de segurança nacional;

. as tecnologias sofisticadas podem bloquear, alterar e apagar material digital, apertando apenas um botão.

Então, o “buraco da memória” já não é mais ficção.

NSA Espionagem EUA

Revelações vazadas terão tão pouco sentido como velhos livros empoeirados no sótão, cuja existência é ignorada.

Poste o que quiser. As leis de liberdade de expressão permitem que você o faça. Mas que sentido haverá, se ninguém puder ler?

Seu tempo seria melhor empregado parando em alguma esquina e gritando aos transeuntes.

Num futuro já fácil de imaginar, um conjunto de revelações similares às de Snowden poderá ser bloqueado ou excluído com tanta rapidez que ninguém poderá republicá-las.

Tecnologia em contínuo desenvolvimento, se viradas 180 graus, poderão eliminar maciçamente informações e opiniões.

A internet é um espaço amplo, mas não infinito. Está centralizando rapidamente informações nas mãos de poucas corporações, sob o controle de poucos governos e os EUA encontram-se no centro das principais rotas de trânsito da rede.

Agora, você deveria sentir um calafrio. Estamos vendo, em tempo real, como 1984 passa de uma fantasia futurista para um manual de instruções.

Se isso ocorrer, não será necessário matar um futuro Edward Snowden. Ele já estará morto.

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Peter Van Buren é colaborador regular de Tom Dispatch, Huffington Post e da revista digital Salon.

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