Monstros arquetípicos que assombram em tempos cinzentos
UMA ANÁLISE POLÍTICA DE LUIS F. VERÍSSIMO
O pintor romântico inglês Joseph Mallord William Turner (1775-1851) é considerado por muitos um precursor da arte moderna. Seus trabalhos transmitiam uma emoção extrema.
Sua fascinação com os efeitos da luz e da atmosfera na percepção e na reprodução da natureza só seria igualada, anos depois, em Monet, que inaugurou o impressionismo.
E, principalmente, nas suas paisagens marítimas, Turner ultrapassou o impressionismo precoce e pode ser considerado, também, o primeiro abstracionista.
Há uma teoria segundo a qual as fantásticas cores difusas dos céus pintados por Turner eram resultado da presença no ar da cinza expelida pelo vulcão Tambora, na Indonésia, em 1815.
A luz filtrada pela cinza chegava aos olhos de Turner dispersada, numa combinação de cores nunca vista – pelo menos por outros pintores.
De acordo com a teoria, uma história da arte honesta teria que atribuir a invenção do abstracionismo ao Tambora, tanto quanto ao Turner.
A explosão do vulcão na ilha Sumbawa, do arquipélago indonésio, a maior registrada na História até então, teve outros efeitos climáticos e artísticos.
As cinzas vulcânicas cobriram boa parte do planeta, afetando, entre outras coisas, a produção agrícola e acrescentando milhares de mortos por desnutrição aos mortos diretamente pela erupção.
Na Europa, 1816 foi chamado de o Ano Sem Verão ou Ano da Pobreza, pois foi um período em que o sol não apareceu, eclipsado pelo inverno vulcânico.
Também sob a sombra das emanações do Tambora, em 1816, numa casa perto do lago de Genebra, dois ingleses ociosos criaram dois monstros arquetípicos que ficariam como símbolos literários do tempo cinzento.
Mary Shelley escreveu Frankenstein e John Polidori inventou um vampiro, protótipo do Drácula que Bram Stoker popularizaria mais tarde. Há outra teoria segundo a qual o Tambora também foi coautor destas obras.
E nós com o Tambora? Nada. Só cabe, talvez, uma reflexão sobre a influência que algo remoto como um vulcão na Indonésia pode ter na vida de todo o mundo.
Substitua-se as nuvens negras do vulcão pairando no ar por este sentimento de tragédia iminente que nos cobre, com a multiplicação de guerras cada vez mais cruentas, o fosso cada vez maior entre ricos e pobres, as evidências agora inegáveis do aquecimento da Terra e do desastre ecológico que vem aí.
E também as novas tecnologias que em vez de aproximar as pessoas as dividem e embrutecem, o horror do contágio mortal por um vírus da miséria incontrolável, este clima de fim de século, embora a século recém tenha começado – e temos razões suficientes para pensamentos cinzentos.
Luis Fernando Veríssimo