Vampiros políticos criados pela velha mídia assombram opinião pública
O NINHO NEOLIBERAL TUCANO
No atacado, para quem ainda não conhece, Luis Nassif é um dos mais conceituados jornalistas políticos e econômicos do País. Durante parte de sua carreira profissional, frequentou com desenvoltura os ninhos mais emplumados da alta tucanagem paulista e, por conseguinte, nacional.
Começou a descer do galho ao constatar a opção preferencial da vacilante social-democracia pelo neoliberalismo extremado dos anos 90, que culminou com a onda de saques promovida por máfias empresariais e midiáticas ao patrimônio público durante o processo conhecido como privataria.
Ao denunciar mazelas deste período negro do governo FHC, Nassif se indispôs cada vez mais com setores reacionários da imprensa quatrocentona. A seguir, travou uma dura batalha contra o golpismo da poderosa editora Abril, vocalizado através da revista Veja e seus blogs de esgoto.
Mais recentemente tem sido alvo constante de ataques do exército de trolls e zumbis mantidos por um José Serra tirânico e vingativo, por se contrapor à sua obsessão em alcançar a presidência da República — seja qual for o custo ou o expediente que tenha de lançar mão para alcançar seu projeto pessoal de poder.
O artigo que se segue, portanto — embora possa dar esta impressão –, não foi escrito com o fígado. Pelo contrário, ele resume dezenas e dezenas de posts de reflexão política que Luis Nassif publica com regularidade canina em seu blog desde antes da pré-campanha eleitoral de 2010 até os dias atuais.
SERRA ACABOU, A INTOLERÂNCIA PERSISTE
Por Luis Nassif *
Um dos recursos de legitimação mais utilizados pela velha mídia é o da criação de Vampiros: o político que encarna o mal, tem sete vidas, sempre volta para assombrar, deixando a opinião pública assustada e confiante de que apenas a mídia será capaz de defendê-la.
Após a redemocratização, foram candidatos a Vampiro da vez sucessivamente Paulo Maluf, Orestes Quércia, ACM não, Fernando Collor, Renan Calheiros, José Sarney e, mais recentemente, Lula — apesar de sua enorme aceitação popular.
Nos últimos dois anos, porém, a realidade política impôs José Serra como candidato efetivo a Vampiro da vez — mesmo tendo o apoio dos caçadores de vampiros. E aí por razões objetivas. Sua vitória nas eleições significaria mergulhar o país em uma noite de São Bartolomeu, em um banho (simbólico) de sangue, em uma guerra que racharia inexoravelmente a vida nacional.
Pois o Vampiro não morreu, porque não era Serra. Este foi apenas um instrumento, um desmiolado de voo curto, um ambicioso sem escrúpulos que colocou biografia, amigos, lealdades a serviço do verdadeiro Vampiro: o clima de intolerância que sacode o Brasil há vários anos, como ferramenta política única de oposição.
Hoje em dia, Serra parece cada vez mais o empregado do vampiro, aquela personagem que frequenta o palácio do Drácula com andar trôpego, pronunciando frases desconexas, se ajeitando sempre que vê uma máquina fotográfica ou uma câmera de TV.
Quem conhece os meandros da imprensa sabe que, por trás da suposta blindagem que ainda cerca Serra, ele se tornou o personagem preferencial de fotógrafos e editores para fotos em posição ridícula — é a maneira sutil com que o jornalismo enterra seus mortos.
O enterro simbólico se deu hoje, com a publicação do primeiro artigo de Aécio Neves como colunista da Folha. A empresa deve muito a Serra. O jornal retribuiu durante a campanha. No final, percebeu que Serra tinha se tornado peso excessivo.
Quando a atenção total do Brasil se concentrava em sua figura — na qualidade de candidato a presidente — veio à tona o dissimulado, o pregador maluco acenando com o fogo do inferno, invadindo casas simples para ler a Bíblia, pedindo ostensivamente cabeça de jornalistas.
AS MUDANÇAS DE SERRA
Antes de expor sua verdadeira personalidade, Serra era um político que conseguia encontrar o eixo nas ideias de meia dúzia de personagens próximos.
Na economia, nos desenvolvimentistas da Unicamp e da UFRJ, em Lessa, Conceição, Belluzzo; no campo industrial, em Paulo Cunha, do grupo Ultra; na saúde, colou em David Capistrano que lhe permitiu construir sua grande obra pública; nas finanças públicas, no grande José Roberto Afonso — apesar de Serra ter passado a vida vendendo a falsa ideia de que foi o criador dos modernos modelos de orçamento público (que existem desde 1964); na inovação, em um grupo de tecnólogos da Unicamp.
Enganou a quase todos apresentando-se como o grande campeão capaz de colocar os conceitos em prática, o anti-Malan, o anti-FHC que faria acontecer. Sua frase predileta era: “Eu faço acontecer”.
A decepção com Serra surgiu já no governo do Estado. Gradativamente, sua não-atuação passou a expor o vazio de ideias e ação. Em plena crise de 2008, aplicou um arrocho fiscal no Estado. Nos momentos mais graves de seu governo, fugiu.
Foi assim nas enchentes que destruíram São Luiz do Paraitinga e inundaram São Paulo. Não participou de uma reunião sequer — repito, de nenhuma reunião sequer — com a Defesa Civil do Estado. Levou três dias para se pronunciar e o máximo que fez foi uma twittada dizendo estar tomando providências.
Foi Serra o grande responsável pelas enchentes, ao cortar os investimentos no desassoreamento do rio Tietê. Mas fez com que a conta fosse jogada em Kassab e nos munícipes “que jogam lixo nas ruas”.
O mesmo aconteceu na crise de 2008. Empresários e centrais sindicais tentando marcar reunião para enfrentar a crise. E Serra isolado no seu gabinete, fugindo, aumentando impostos através da substituição tributária. Só aceitou recebê-los quando veio o aviso de que estava sendo preparada uma manifestação na frente do Palácio Bandeirantes, de industriais e sindicalistas.
No episódio da invasão da USP, revelou-se seu traço mais marcante e negativo: o do valente nas sombras. Definiu-se uma diretriz importante, a de alinhar universidades e institutos com metas do Estado. Faltaram as metas.
Em seus quatro anos de governo, em nenhum momento o “desenvolvimentista” Serra, o homem do PPA (Plano Plurianual) logrou construir um documento sequer que definisse diretrizes para São Paulo, vocações, metas.
O que pretendia das Universidades era apenas o de impor seu tacão, mandar, desmontar — como fez na Cultura, com o infeliz João Sayad. Colocou um Secretário truculento, a USP reagiu, Serra estimulou a reitora e chamar a PM. Quando sobreveio o conflito, deixou a reitora exposta aos lobos, tirou o secretário infeliz, colocou um mais jeitoso. Mas abandonou completamente a ideia da coordenação de pesquisas. Bastava surgir um obstáculo para Serra desistir.
O episódio da greve da Polícia Civil foi similar. O embate ocorreu devido à resistência de Serra em receber representantes da categoria. Cortou o diálogo até que explodiu o conflito. Na semana seguinte, o valente Serra concedeu redução de prazo de aposentadoria para os policiais.
Na área de inovação, mesmo tendo como aliados os principais nomes do governo FHC, nada fez. Um dia indaguei de um desses oficiais da inovação a razão de nada andar em São Paulo. E ele, desanimado: “O homem (Serra) tem implicância com a Universidade”.
O desmonte atual da TV Cultura e o aparelhamento da Secretaria da Cultura é apenas o ato final de sua participação no governo do Estado.
O COMANDANTE DAS TREVAS
O único campo em que Serra agia com naturalidade era nos bastidores, articulando as piores baixarias que a política brasileira já testemunhou. Numa ponta, alimentava seus criadores de dossiês. Na outra, se alinhou com o pior esgoto que a imprensa brasileira produziu.
Através dessas manobras, conseguiu que blogueiros e parajornalistas de grandes publicações atacassem um a um os “inimigos” criados por sua imaginação: José Anibal, Franklin Martins, Eliane Cantanhede (com quem invocava na época), Kennedy Alencar, Geraldo Alckmin, Aécio Neves.
Ao mesmo tempo, convenceu os jornalões a participarem do episódio mais desgastante da moderna história da mídia: a defesa de Daniel Dantas no caso Satiagraha. Todos os que ousaram apontar Dantas como financiador de Marco Valério foram fuzilados pelos próprios companheiros. Um lobista de quinta categoria foi alçado à condição de “pensador político”, para que os podres de Serra, que veiculava, pudessem ganhar eficácia.
Não se poupou nada. Atacaram jornalistas, seus familiares, expuseram suas esposas, espalhando uma infâmia ampla pela rede. E todos os autores eram ligados umbilicalmente a Serra.
A pá de cal na biografia de Serra será a elucidação final de suas relações com Dantas.
A senilidade política de Serra não poupou nenhum dos seus seguidores. Muitos, especialmente os novos aliados da mídia, foram seduzidos pela promessa de serem os novos donos do Brasil.
O festival de deslumbramento, o oba-oba recíproco com que se saudavam a cada lançamento de livro da “turma”, a facilidade com que montavam redes de assassinato de reputação — não apenas de adversários políticos de Serra, mas de pessoas do meio artístico, escritores, intelectuais com quem tivessem desavenças ou mera inveja — entrará nos anais da imprensa brasileira como um de seus momentos mais deploráveis.
Mas não apenas eles. Aliados antigos, alguns com bela biografia, acabaram induzidos a atos canalhas, como se a prova de lealdade fosse o de cometer um ato vil em benefício do chefe.
O que explica um sujeito com a biografia de Luiz Antonio Marrey Filho, Secretário de Justiça de Serra, pressionar o jornal “Valor” até o limite, para publicar um artigo em que acusava uma jornalista de estar a serviço da indústria do tabaco? O “crime” da jornalista foi ter criticado o instituto da delação na Lei do Fumo. Apenas isso.
Daqui para frente, só restará o Serra “comandante das trevas”. Cada vez mais deixará de ser personagem dos jornais, mas continuará alimentando-os com dossiês. Seus comandados, agora, não são mais colunistas da velha mídia, mas “trolls” de Internet — enquanto puder mantê-los com as verbas da Secretaria da Cultura.
OS NOVOS VELHOS TEMPOS
Não cometerei a tolice de comparar esse clima com o nazismo e Serra com Hitler. Mas mostra com notável didatismo como as circunstâncias geram personagens improváveis.
O que ocorreu com parte do Brasil nos últimos anos espelha de forma ampla a “psicologia de massa do fascismo”. Aliás, não apenas com o Brasil. Aqui se repetiu com notável exagero o que foram os Estados Unidos na campanha de Obama, o que são os movimentos xenófobos na Europa.
São tempos de profundas transformações que trazem, no bojo, as sementes da intolerância: a resistência dos que não querem ceder aos que sobem; a impaciência dos que querem subir.
Serra foi apenas o ator destrambelhado de um enredo que não foi ele quem criou.
Serve apenas como caricatura para comprovar como as circunstâncias agem sobre a história. De repente, um político que se presumia racional, com história, uma vida política algo medrosa, mas cartesiana, se dá conta das circunstâncias e expõe seu lado mais doentio — que era apenas pressentido de leve no período da suposta “normalidade”.
Até onde teria ido se uma tragédia o colocasse no comando do país?
Digam aí, Lessa, Conceição, Belluzzo, eu mesmo, quando poderíamos supor que aquele Serra lá de trás, que fazia profissão de fé no desenvolvimentismo, na sensibilidade social, pudessem aflorar dessa maneira?
SERRA-FHC
Em todo esse processo, só não consegui entender ainda completamente as relações FHC-Serra.
Na entrevista à revista Piauí, em algumas manifestações esporádicas, FHC — com sua inteligência e acuidade — sempre foi a pessoa que melhor entendeu as fraquezas de Serra. Muitas vezes relutou em apoiá-lo. Sequer queria indicá-lo Ministro. Aliás, tenho parcela da culpa com uma coluna de dezembro de 1994, quando critiquei acerbamente FHC por temer Ministros com luz própria no seu Ministério.
Nas eleições de 2002, Serra dizia ter sido boicotado por FHC porque este supostamente saberia que seu (de Serra) governo seria muito melhor que o dele. Puro autoengano.
FHC sabia mais do que ninguém que Serra nunca teve luz própria e possuía características perigosas em um governante — a pior delas, o ódio permanente contra qualquer pessoa que ousasse criticá-lo.
O que teria levado FHC a apoiar Serra como candidato à presidência, em detrimento de um candidato muito mais competitivo, como Aécio Neves? Tenho para mim que foi a herança emocional de dona Ruth Cardoso e a emotividade que a idade traz para as pessoas, as lembranças de exílio, sei lá.
Serra se foi. O clima que o cercou continua.
Nos próximos anos, a intolerância continuará sendo a marca principal da política brasileira, nos dois lados do muro.
Qualquer político que se aventure a campeão das oposições, por mais cordato que seja, acabará atraído pela massa crítica da intolerância, pelo menos até que se esgotem os princípios que nortearam a era Lula. Na outra ponta, haverá acirramento das posições políticas de grupos mais à esquerda do governo em relação à própria dinâmica de tentativa de preparar o segundo tempo do modelo. E a fome de sempre dos que rodeiam o poder.
Enfim, um belo desafio para a consolidação da democracia brasileira, com novos personagens vergando o fardão de Vampiro.
Mas o verdadeiro Vampiro sendo a intolerância que continua permeando a vida política nacional.
* Daqui: http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/serra-acabou-a-intolerancia-persiste
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