Como a dócil ave dodô, a Humanidade corre o risco de ser extinta

Espécie nativa das Ilhas Maurício

RETORNO AO PASSADO NAS ASAS DA ANTROPOLOGIA

Como a triste história dos dodôs, aves extintas porque eram inofensivas, infelizmente pode se aplicar à Humanidade – só que sem ninguém para chorar por nós.

Por Altair Sales Barbosa *

Após 1948, o mundo científico, de modo geral, foi se acostumando a usar de forma mais frequente a palavra cibernética, termo de origem grega (kybernetes), que significa aquele que governa.

Com a cibernética, nasce a era da automação, a quarta grande revolução na história da humanidade, chamada de Revolução Eletrônica; seu precursor foi o matemático austríaco Norbert Wiener.

Todos os grandes inventos que surgiram depois foram frutos de cálculos efetuados por computadores eletrônicos, que a cada momento se sofisticavam ainda mais, até chegarmos ao quadro atual.

Com o auxílio do computador, foi possível a construção de máquinas nunca antes imaginadas, grandiosas e potentes. Com elas, o homem conquistou o espaço, ocupou todos os rincões para novos empreendimentos agrícolas e pastoris, mudou os cursos dos rios, secou mares, aplainou montanhas e manipulou a genética humana, vegetal e animal de um modo geral.

Além disso, incrementou a comunicação via satélite, em níveis jamais imaginados, mudou de forma avassaladora os ecossistemas da Terra, continuando a obra iniciada pelos antigos caçadores e coletores do Paleolítico.

A grande diferença entre as tecnologias elétrica e eletrônica reside no fato de que os computadores foram projetados para funcionar como os neurônios do cérebro humano. Na realidade, a computação trouxe para a humanidade grandes revoluções e criou um mundo de relações instantâneas.

Mas é importante destacar que a aldeia global, pensada nos parâmetros de McLuhan, não se concretizou, primeiro porque os grandes meios de comunicação ficaram nas mãos de corporações ou órgãos estatais, onde 80% ou mais do conteúdo veiculado refletem seus interesses e ideologias.

Essas corporações, explorando ao máximo a fragilidade das massas, advindas da nova situação econômica, montaram programas sensacionalistas, contribuindo, dessa forma, para uma crescente alienação da população. A tática é simples: quanto mais alienada for a população, mais fácil fica para semear as manipulações.

A popularização e a crescente vulgarização das comunicações virtuais se transformaram numa bússola sem ponteiros, onde os usuários se vêm mais perdidos que orientados.

Em outras palavras, é mais indicado pensar a globalização na concepção de Milton Santos, onde ressalta que a conquista do território e a imposição de uma ideologia dominante são o que caracterizam este novo fenômeno.

Assim é que, ao chegarmos ao século XXI, temos a certeza absoluta de que a humanidade, além de não abandonar seu espírito predatório – que vem desde suas origens –, ainda anexou à sua disposição mecanismos capazes de conduzi-la à própria extinção.

Não sabemos como os seres humanos evoluirão daqui para o futuro ou se serão extintos por causas naturais ou por fatores criados pela própria espécie. Casos que envolvem extinções são corriqueiros na história evolutiva da Terra.

Quem sabe algum caminho luminoso conduza a um tipo de educação interdisciplinar e ao mesmo tempo pluridisciplinar onde não haja distinção de saberes, e a busca do conhecimento, da verdade e da humildade seja empunhada como uma bandeira branca que vigore como lei pétrea.

Talvez esse novo e desafiador modelo traga para a humanidade um fiapo de esperança. Em seu livro “Estórias para quem gosta de ensinar”, o educador Rubem Alves nos brinda com uma fábula do mundo das aves, muito rica em todo seu conteúdo. Assim, nos fala o autor:

Tudo aconteceu numa terra distante, no tempo em que os bichos falavam…

Os urubus, aves por natureza becadas, mas sem grandes dotes para o canto, decidiram que, mesmo contra a natureza, eles haveriam de tornar grandes cantores. E para isso fundaram escolas e importaram professores, gargarejaram dó-ré-mi-fá, mandaram imprimir diplomas, e fizeram competições entre si, para ver quais deles seriam os mais importantes e teriam a permissão para mandar nos outros.

Foi assim que eles organizaram concursos e se deram nomes pomposos, e o sonho de cada urubuzinho, instrutor, em início de carreira, era se tornar um respeitável urubu-titular, a quem chamam por Vossa Excelência.

Tudo ia bem até que a doce tranquilidade da hierarquia dos urubus foi estremecida e a floresta invadida por bandos de pintassilgos tagarelas, que brincavam com os canários e faziam serenatas com os sabiás…

Os velhos urubus entortaram o bico e convocaram pintassilgos, sabiás e canários para um inquérito – onde estão os documentos de seus concursos? E as pobres aves se olharam perplexas, porque nunca haviam imaginado que tais coisas houvesse. Não haviam passado por escolas de canto porque o canto nascera com elas. E nunca apresentaram um diploma para provar que sabiam cantar, mas cantavam, simplesmente…

– Não, assim não pode ser. Cantar sem a titulação devida é um desrespeito à ordem.

E os urubus, em uníssono, expulsaram da floresta os passarinhos que cantavam sem alvarás…

O que se quer dizer é que em terra de urubu diplomado não se ouve canto de sabiá.

Essa fábula reflete o que também pensavam Paulo Freire, Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, posicionados entre os maiores filósofos da educação do século XX. Eles foram unânimes em afirmar: o maior analfabeto não é aquele que não sabe ler, mas aquele que lê, mas não entende o que leu.

Em outras palavras, é aquele que não entende e não enxerga os sinais que a realidade atual insiste em colocar bem à frente, e que bailam diante dos olhos como borboletas diante das plantas floridas.

A espiral da ignorância analfabética chegou ao ápice nos tempos atuais, onde produção de conhecimentos, produção cultural, saberes e culturas tradicionais de nada valem diante da burocracia, tal qual uma cerca mal feita de arame farpado que tomou conta das escolas públicas, contribuindo para a falência da educação, cujo desempenho dos mais letrados urubus é incapaz de gorjear uma nota afinada e a escola incapaz de propor uma Pedagogia da Esperança ou para a Esperança.

“O caminho para o êxito, pode se assemelhar a uma encruzilhada, mas sabedoria, conhecimento e discernimento podem apontar o rumo correto.”

O primeiro, discernimento, é a clareza referente ao conceito de tempo, claro que neste espaço é impossível discuti-lo em profundidade, desde Einstein, Hawking e Prigogine, que facilita e elucida a compreensão da Teoria do Caos, Fractais e Efeito Borboleta.

Seria de grande utilidade que se levasse em consideração alguns tipos de tempo: o tempo cosmológico, medido em vários bilhões de anos; o tempo geológico, calculado em alguns bilhões, milhões e milhares de anos; o tempo da humanidade calculado em alguns milhares de anos; o tempo do homem, calculado em algumas décadas, e o tempo da sobrevivência, que é aquele tipo de tempo que se situa no fio da navalha e, por isto, está bem no limite entre a vida e a morte, entre as perspectivas e as desilusões, entre a alienação total e a busca da felicidade. Para este tempo, os remédios devem ser emergenciais, porque o tempo da sobrevivência não tem tempo para esperar.

Atualmente, torna-se impossível compreender fenômenos científicos, sociais e comportamentais, tomando como princípio os paradigmas tradicionais que fundamentaram o pensamento científico dos séculos 18, 19, 20 e até os do século 21. Isto porque estamos presenciando a maior revolução da história da humanidade, onde o espaço entre um evento revolucionário e outro diminui com o tempo.

Quando parte da humanidade percebeu que seus modelos de se relacionar com os outros elementos que compõem o meio ambiente poderiam abreviar sua passagem como espécie pelo planeta Terra, ficou em posição de alerta.

Organizou uma conferência mundial para discutir o assunto. Isto aconteceu em Estocolmo 1972. Vinte anos após, foi realizada uma outra conferência sobre o mesmo tema, denominada Eco-92. E, depois, a Rio+20. Entre uma conferência e outra, houve eventos menores, visando protocolar ações concretas.

Essas conferências, reuniões, discussões e protocolos trouxeram vários conhecimentos. Entre estes, figura o que possibilitou à humanidade perceber que não passa de uma espécie a mais no reino animal, cujo êxito de sobrevivência na Terra depende da interação harmoniosa dos diversos componentes do meio ambiente: atmosfera, hidrosfera, litosfera, biosfera, ventos, regimes climáticos, relevos, ruídos, fogos, energias etc.

Entretanto, se por um lado veio o conhecimento, por outro faltou a conscientização, esta que exige mudanças radicais de atitudes e postura. Isso não aconteceu.

O que se pretende enfatizar é a ideia de que somente o conhecimento do problema não é suficiente para sua solução. Para que isto aconteça, torna-se necessária a tomada de atitudes concretas.

Os caminhos para a busca da solução são vários e podem ser mais eficientes se interconectados.

Estes caminhos, por um lado, exigem um novo padrão de educação, o que pressupõe incentivo à criatividade, à pesquisa e à busca de uma nova metodologia pedagógica. Por outro lado, exigem políticas públicas fundamentadas no conhecimento e que levem em consideração as vocações regionais.

Faz-se necessário que se combata a miséria, e o resgate da dignidade humana deve ser missão prioritária. É possível que algumas soluções possam exigir também mudanças, às vezes radicais, na orientação política e econômica.

Se mensurarmos global ou regionalmente as situações ambientais, que não podem ser separadas das questões sociais e econômicas, desde o momento em que se realizou a primeira conferência em Estocolmo até os dias atuais constataremos que a qualidade de vida piorou em função da predação ambiental, social e econômica.

Nesse período, a retirada da vegetação nativa aumentou de maneira assustadora, os cursos dos rios foram alterados, montanhas aplainadas pela atividade mineradora e os aquíferos diminuíram seus reservatórios de água.

Simultaneamente, a violência urbana, tal como fogo em palheiro, tomou proporções antes inconcebíveis, o tráfico de pessoas tornou-se atividade rotineira, as diversas formas de neuroses aumentaram, e assim por diante.

Grande parte desses fatores pode ser atribuído à falta de criatividade e de idealismo. A criatividade é a matriz da competência. Sem criatividade não há idealismo. E a falta de idealismo leva à falência da sociedade e obriga os que buscam a consciência, e consequentemente a liberdade e a felicidade, a entrarem por caminhos ideológicos e tortuosos, às vezes nunca imaginados.

Na base de todas estas questões encontra-se a educação. Nesse sentido, as escolas, tanto as fundamentais quanto as básicas e as superiores, que por algum tempo eram tidas como continuadoras da família, há muito deixaram de exercer essa função, mergulhando num pântano de lodo malcheiroso e movediço que suga e não dá oportunidades para o desenvolvimento da criatividade.

Os professores não conseguem a motivação necessária para transmitir o conteúdo. Isso acontece porque o conteúdo não traz novidade e não é mais motivador. Grande parte dos alunos já conhece, por outros meios, aquilo que lhes é transmitido. A aula dentro da sala perde o interesse e o sentido.

A escola, que outrora se constituía num ponto de encontro para se fazer amizades, trocar ideias e aprender novidades, não é mais nada disso. Hoje, as redes sociais desempenham este papel, às vezes de forma imoral, mentirosa e alienadora.

Grande parte das escolas básicas e fundamentais carece de pátios ideais para brincadeiras, não tem bibliotecas, muito menos equipamentos para dinamizar uma aula. E nem de longe pode-se mencionar que não possuem laboratórios. Isto é muito luxo, para quem acha que o ensino não necessita de experiências.

Os professores se sentem desmotivados não só pela remuneração. Aliás, para quem nunca ministrou uma aula, pode-se afirmar que não há, na terra, tarefa mais exigente, responsável e cansativa. Porém, também, sentem-se desmotivados porque não são mais respeitados pelos alunos.

As associações de pais de alunos, apoiadas pelos meios de comunicação sensacionalistas, são capazes de levar um professor à justiça se, no intuito de impor a disciplina, ele alterar um pouco a voz na sala de aula.

Aliás, por falar em disciplina, as escolas hoje em dia são vigiadas por policiais, porque viraram pontos de compra, venda e consumo de drogas. A falta de perspectivas faz o aluno buscar esses caminhos.

Sabe-se que não se trata de uma tarefa fácil. A prática e a influência do efêmero funcionam como uma venda nos olhos que impede de vislumbrar atitudes duradouras e possivelmente eternas, que possam ser tomadas a favor da educação, cuja eficácia é a base de toda sociedade sólida, com valores que perpassam muito tempo e se adaptam com o próprio tempo. Esta palavra foi repetida para que não nos esqueçamos do tempo.

O retorno ao passado utilizou-se de uma fábula avícola. A conclusão do raciocínio se dá, não com uma fábula, mas com a história real e comovente de uma outra ave, o dodô, para que dessa história possamos garimpar sabedorias e, de mãos dadas com este conhecimento, caminhar em direção ao arco-íris.

Contam que o saudoso Douglas Adams, comoveu-se com o triste caso do dodô. Por causa disso, em um dos episódios da série Doctor Who, que ele escreveu para o rádio nos anos 1960, a sala do idoso professor Chronotis, em Cambridge, fazia as vezes de máquina do tempo, que ele usava para um único propósito, seu vício secreto: as visitas repetidas às Ilhas Maurício, onde ia chorar pelo dodô.

Por causa de uma greve na BBC, esse episódio nunca foi transmitido, e mais tarde Douglas Adams reciclou o persistente motivo do dodô em outra novela denominada Agência de Detetives Holística.

Numa certa ocasião, o conto do dodô caiu nas mãos de um benquisto professor universitário. Ao lê-lo, o professor comovido de tanta emoção não suportou e foi às lágrimas, seus olhos marejaram e ele, com vergonha dos alunos, escondeu-se num canto do corredor. Foi quando alguns se aproximaram e perguntaram:

– Por que choras, professor?

E assim rodeado de alguns alunos, com ar professoral de sempre e com sabedoria, respondeu:

– Choro pela triste história do dodô!

Percebendo que seus alunos não entenderam, começou a explicar:

– Dodô era uma ave indefesa que habitava as Ilhas Maurício, localizada no oceano Índico, descoberta por marinheiros portugueses e holandeses. Após uma série de atrocidades cometidas por estes, esta ave foi completamente extinta.

Os ancestrais do dodô chegaram até o local ainda aladas. Com o passar dos tempos, a seleção natural, que está sempre mexendo nas espécies, diminuindo, expandindo, ajustando, pondo e tirando, otimizando o êxito reprodutivo imediato, contribuiu para que os dodôs perdessem as asas, pois não precisavam mais delas, especialmente porque não encontraram predadores na ilha e, assim, por milhares de anos, viveram e construíram suas colônias.

Quando os navegantes portugueses chegaram a Maurício, em 1507, os abundantes dodôs, grandes aves que chegavam a pesar até 12 quilos, eram completamente mansos e se aproximavam daquelas novas figuras, sem receio ou desconfiança, já que por milhares de anos não haviam se confrontado com predadores.

Os infelizes dodôs foram mortos a pauladas pelos portugueses e mais tarde pelos holandeses. Muitos foram mortos por esporte. A extinção veio a galope. Como é comum, ela ocorreu por uma combinação de fatores.

Os humanos introduziram na ilha cães, porcos, ratos e refugiados religiosos. Os cães os caçavam de forma esbaforida, os porcos e ratos comiam seus ovos, os humanos plantavam cana-de-açúcar e destruíram os seus habitats.

Chorar pelo dodô me remete a todas estas situações e outras mais. Por isso, choro também por aqueles que perderam seus territórios, choro pelos sem-teto, choro pelos que foram enganados, choro por aqueles que o sistema fez perder o amor pela vida, choro pelos que têm fome.

Mas gostaria de lhes falar, também, que por detrás de todo este chorar, que se manifesta de forma explícita, esconde um choro ainda mais dolorido, que procuro esconder para que ninguém possa ver meus olhos marejados.

Este choro é pelos elementos fundamentais que a educação perdeu, principalmente a dignidade, o respeito, o entusiasmo e o orgulho de ser professor. Para mim, ele é o sinônimo da própria vergonha, por isso procuro chorar escondido e bem baixinho.

Sinto vergonha da incapacidade de não poder ter evitado os tenebrosos caminhos que conduziram a educação para a situação em que se encontra.

E, por último, dirigindo-se aos alunos ainda falou:

– A compreensão da realidade atual cibernética, a inércia na tomada de atitudes radicais, a falta de conscientização, a abdicação do papel fundamental da educação na formação de cidadãos conscientes e o abandono da busca da felicidade e liberdade são situações que somente poderão ser explicadas, ou talvez compreendidas, através da mudança radical dos padrões de como vimos o mundo e como o vemos atualmente.

Para isto, a busca de novos paradigmas se torna imprescindível. Os que existem são incapazes de fornecer as respostas necessárias para acharmos o caminho do êxito e do equilíbrio.

Se falharmos nesta missão, é possível que tenhamos o mesmo destino dos saudosos dodôs, mas certamente não sobrará ninguém para chorar por nós.

* Altair Sales Barbosa é professor, doutor em Antropologia pela Smithsonian Institution – Washington.

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