Limites para jornalistas que se consideram acima do bem e do mal
O PAPEL DA IMPRENSA
Liberdade de expressão não é um conceito que tenha valor em si e sim dentro de um contexto. Ninguém sabe com certeza dizer quais os limites do jornalismo no Brasil — nem, ao que parece, a própria Justiça. O desagregador clima de confronto entre a imprensa e o governo recomenda que se instale um comitê independente para rediscutir o papel da mídia o quanto antes, para a pacificação dos ânimos.
QUEM FISCALIZA O FISCAL?
Por Paulo Nogueira *
Já é hora de se discutir, como no Reino Unido, os limites do jornalismo no Brasil.
Há, na Inglaterra, uma guerra fria entre os políticos e os jornalistas que cobrem política.
Os políticos entendem que os jornalistas não receberam mandato da sociedade – votos, em suma – que lhes dê legimitidade nos comentários ou nos debates.
Em seu bom livro sobre jornalismo, My Trade – ou Meu Ofício –, Andrew Marr, editor de política da BBC, detém-se longamente nesta discussão. Há alguma coisa nela, feitas as devidas adaptações, que vale para o Brasil.
Quais os limites do jornalismo e dos jornalistas?
Vejamos a Folha de S. Paulo, por exemplo. Ela procura se colocar, em editoriais e em publicidade, como uma espécie de fiscal sagrado dos governos.
Tudo bem [para alguns]. Mas é preciso não perder de vista que ela não recebeu essa incumbência da sociedade.
Não foi votada. Não foi eleita.
Fora isso, existe fiscal que não é fiscalizado?
Jornalismo é, como todos os outros, um negócio. Em geral, quem investe em jornalismo não está atrás de dinheiro. Os lucros não costumam ser grandes. O que o jornalismo dá é prestígio, influência.
Empresários interessados em recompensas mais palpáveis fazem suas apostas em outras áreas.
No começo da primeira década de 2000, quando a internet já desaconselhava investimentos em papel no Reino Unido, um empresário russo comprou o jornal inglês The Evening Standard, em grave crise financeira, examente por isso: para ganhar respeitabilidade.
É um jogo antigo.
Na biografia semi-oficial de Octavio Frias de Oliveira, está publicado um episódio revelador.
Nabantino, o antigo dono da Folha, estava desencantado porque se julgara traído pelos jornalistas que fizeram a greve de 1961. Decidiu vender o jornal.
Um amigo comum de Nabantino e Frias sugeriu que ele comprasse. “Dinheiro você já tem da granja”, ele disse. “O jornal vai dar prestígio a você”.
Na biografia, a coleção de fotos de Frias ao lado de personalidades mostra que o objetivo foi completamente alcançado. Um granjeiro não estaria em nenhuma daquelas fotos.
Ao comprar a Folha, Frias comprou prestígio social — e adulação do mundo político.
Sendo um negócio, o jornalismo não está acima do bem e do mal. É natural que prevaleçam, nele, as razões de empresa. E essas razões podem coincidir com as razões nacionais – ou não.
Observe o mais carismático – não necessariamente o melhor ou mais escrupuloso – empresário de jornalismo da história do Brasil, Roberto Marinho, da Globo.
Quem garante que o que era melhor para ele era o melhor para o país? Roberto Marinho era tão magnânimo a ponto de pôr os interesses nacionais à frente dos pessoais?
Como a sociedade não elegeu empresas jornalísticas, seus donos não têm que dar satisfação a ninguém sobre coisas como o uso dão ao dinheiro que retiram.
Se decidem vender o negócio, nada os impede. Essa é a parte boa de você não ter um vínculo ou uma delegação direta da sociedade. Não existem amarras burocráticas para seus movimentos.
Mas você não pode ficar com a parte boa e dispensar a outra – a que não lhe garante tratamento privilegiado apenas por ser da imprensa.
Liberdade de expressão não é um conceito que tenha valor em si e sim dentro de um contexto. Na Inglaterra, você não pode publicar um artigo que exalte o terror islâmico, por exemplo.
Mesmo no célebre Speaker’s Corner – o canto no Hyde Park tradicional por abrigar qualquer tipo de manifestação de gente que suba num caixote ou numa escada – se você louvar Bin Laden é preso assim que pisar no chão.
No Reino Unido, este é um debate atualíssimo, depois que o tabloide News of the World – o “NoW” –, de Rupert Murdoch, quebrou todas as barreiras da decência e da legalidade na busca de furos.
O NoW invadia criminosamente caixas de mensagem de centenas de pessoas, a maior parte delas celebridades e políticos, para vender mais — e portanto ganhar dinheiro com isso.
Quando se soube das dimensões do escândalo, o governo britânico, sob pressão da opinião pública, montou um comitê independente para rediscutir a mídia — o que é aceitável e o que não é.
Os trabalhos são comandados por Lorde Leveson, um juiz de alto nível que vem sabatinando grandes personagens da imprensa, sob câmaras de tevê, em busca de luzes.
O premiê David Cameron, por exemplo, teve que explicar a Leveson a natureza de sua relação com o grupo Murdoch. Murdoch, ele próprio, na idade provecta de 81 anos, foi interrogado duas vezes pelo comitê.
Neste momento, a questão é se a auto-regulamentação do jornalismo deve ser mantida ou não. As empresas não gostam, naturalmente, da ideia de que a regulamentação seja tirada de seu controle.
Mas a opinião pública parece ter outra opinião. A auto-regulamentação tem sido chamada de “cachorro sem dentes”.
Mais que tudo, os fatos depõem contra a eficácia dela: basta ver o comportamento selvagem e irresponsável não apenas do NoW mas de todos os tabloides ingleses.
O que muita gente se pergunta, no Reino Unido, é por que as pessoas deveriam confiar agora na auto-regulamentação depois de seu espetacular fracasso.
O Brasil terá que passar por uma discussão nos mesmos moldes, em nome do interesse público. Ninguém sabe com certeza dizer quais os limites do jornalismo no Brasil — nem, ao que parece, a própria Justiça.
O desagregador clima de confronto entre a mídia e o governo recomenda que se faça isso o quanto antes, para a pacificação dos ânimos. Estudar cuidadosamente o que se passa no Reino Unido pode encurtar o caminho.
Há dois desafios para que o Brasil crie sua Comissão Leveson.
Um é vencer a resistência da mídia em sair da área de conforto da auto-regulamentação. Devem prevalecer aí não os interesses particulares e sim os do país.
O outro é neutralizar a tentação do governo de controlar um comitê que só faz sentido se for genuinamente independente.
Para que as coisas corram na velocidade desejável, é preciso ter em vista que o jornalismo é um negócio como todo outro. Apenas, em vez de vender sabão, você vende notícias e análises.
Isso dá prestígio – mas não pode dar imunidade.
* No Diário de Centro do Mundo