Classe média: a massa de manobra movida pelo medo e pelo ódio
VIVER DE APARÊNCIAS E ACHAR ISSO CHIQUE
O ódio. A força de uma classe média apavorada movida por ele pode ser monumental. A massa de manobra em que se transforma tem o poder de varrer uma sociedade. E até matar.
A reflexão sobre o medo atávico dos estratos medianos da sociedade, que tanto contribuiram para o golpe, é da jornalista mineira Maria Bitarello, autora do livro Só Sei Que Foi Assim:
CLASSE MÉDIA: O FETICHE DO IGUAL
O fator determinante da pobreza – econômica, não de espírito – é a possibilidade de escolha. O pobre, muito mais do que carecer de coisas, pertences, bens, é privado de escolhas, de alternativas.
E, salvo as exceções que sempre existem, a vida lhe impõe um caminho, muitas vezes sem bifurcações no percurso. O que o dinheiro compra, portanto, são escolhas.
De acordo com esse raciocínio de pobreza, por mais limitado que seja, crescer num lar de classe média significa ter oportunidades de escolhas.
Muitas, como:
. Ter uma infância e crescer na hora em que se estiver pronto para crescer;
. Estudar, o que e onde fazê-lo;
. Viajar, trabalhar, aprender línguas, música, esportes, conhecer culturas diferentes, se expor à leitura, às artes;
. Votar;
. Não ter filhos ou casar cedo demais;
. Se relacionar com quem o coração mandar;
. Mudar de ideia, voltar atrás, andar para frente, jogar tudo para o alto e começar de novo;
. Viver da forma que seja verdadeira para cada um.
Tudo isso é ouro. Alguns diriam que não tem preço, mas se isso fosse verdade, todos teriam um pouquinho para si. O que sabemos não ser o caso.
As escolhas às quais muitos de nós tivemos acesso não estão disponíveis a todos e nos foram concedidas, em grandíssima medida, devido à classe social à qual pertencemos.
Nós as tivemos porque outra pessoas não tiveram. É uma lei básica e perversa do capitalismo.
Ao mesmo tempo, a classe média não é só uma fatia social, é uma cultura também. E uma das características constitutivas dessa amorfa classe cultural é o medo.
A classe média é apavorada. Tem medo de perder suas regalias disfarçadas de segurança e estabilidade. Ela paralisa sua vida em função desse medo.
Segrega. Empurra o diferente para longe. Vota mal. Não quer pretos nas escolas dos filhos brancos. Nem a boca de fumo no fim da rua.
Tem medo do flanelinha que cuida dos carros. Da prostituta. De sair do carro, de andar na rua.
Acha que a riqueza máxima será, um dia, se separar do convívio com os pobres.
É uma cultura pobre de espírito. Chata. A ela pertencem a moral e os bons costumes. Vive de aparências e acha isso chique.
E se tudo isso parece apenas medíocre e inofensivo, não se engane: há garras e dentes. Pois é nela, na classe média, que é feita a engorda do ódio. É ela que legitima atrocidades.
Movida pelo pavor, a classe média é capaz de qualquer coisa para manter erguidas as barras que a aprisionam no apartamento, enjaulada; dentro do carro, atrás de vidros blindados; reclusa no condomínio, onde todos são iguais.
Não se sai mais de casa porque lá fora é muito perigoso. E já viu o que faz um bicho em perigo, acuado? Ele morde, ataca.
Essa noção da classe média apavorada pode ser observada no documentário A Opinião Pública, de Arnaldo Jabor, lançado em 1967. Vale a pena assistir porque não tem nada a ver com o atual comentarista reacionário da Globo.
É um registro das mudanças sociais pelas quais o Brasil passava na década de 1960. Uma época semelhante à de agora, quando um momento de abertura foi nocauteado por uma tenebrosa onda conservadora.
Esse “medo” do qual fala Jabor nasce do que Marcia Tiburi chama de “fetiche do igual”, expressão que aparece no seu último romance Uma Fuga Perfeita É Sem Volta.
Os adeptos desse fetiche “amam o igual porque, na vida, só o que querem ver é espelho. O espelho que certifica que existem. Onde não há espelho, as pessoas põem ódio”.
O ódio. A força de uma classe média apavorada movida por ele, quando nas mãos da pessoa errada, pode ser monumental. A massa de manobra em que se transforma pode varrer uma sociedade, pode matar.
E uma classe média assustada é tudo o que a direita mais aprecia e melhor sabe usar. Ela vai instigar ainda mais esse ódio que vem do medo, que por sua vez vem da não compreensão do diferente.
Se a classe média brasileira não for sacudida de seu torpor, temos exemplos históricos palpáveis que mostram para onde esse discurso pode descambar.
E a memória precisa ser exercitada, sempre, para que a história não se repita.
Evitar repetições é o que um paciente encontra na análise. É o que se alcança com uma epifania, com um momento de iluminação.
Perceber essas repetições e fazer o furo, não reproduzi-las mecanicamente, liberta. Porque aí, sim, há escolha.
Em tempos de uma classe média que tantas panelas bateu nas janelas – a imagem própria do desespero –, não parece haver escolha, mas mera reprodução.
Por isso, em meio a essa embriaguez burguesa (classista, racista, machista, fascista), será preciso muita riqueza de espírito interior para despertar do transe e exercitar a capacidade de discernimento.
Para perceber as bifurcações no caminho, as opções de desvio que existem, sempre.
A maneira de vê-las é olhar para o outro, para o diferente e, ao mesmo tempo, para dentro – sem medo.
Porque, no fundo, é a mesma coisa. Reconhecer o diferente é um ato íntimo. E só daí sairá algo novo.
* Original no Outras Palavras